quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Felina

Carmen Sílvia Musa Lício

Um dia, ao voltar de um plantão "daqueles" no hospital, encontrei meus filhos, com 9 e 6 anos na época, "cheios de mistérios"... Perguntaram para mim: -"Mãe, se um cachorro, ou gato, quebra uma patinha...o que se faz com ele?". Eu respondi que nós pegamos um palito de sorvete, colocamos ao lado da patinha e envolvemos com uma atadura por mais ou menos uns 15 dias, até sarar.

Nesta época, eu estava trabalhando em três empregos, tentando sobreviver, para poder construir uma casa para morar com meus filhos. Minha mãe, como sempre, me ajudou, cuidando deles enquanto eu trabalhava e tentava lhes dar atenção, entre um serviço e outro...

No dia seguinte, quando voltei do plantão, eles me perguntaram: -"E... se este cachorro, ou gato, tirar a atadura; o que se faz com ele?". Achei estranho, mas respondi: -" A gente pega outro palito e enfaixa novamente com mais força, com cuidado para não apertar demais e coloca um esparadrapo para ele não conseguir tirar...". O assunto se encerrou por aí e conversamos sobre outras coisas...

No outro dia, de novo a mesma pergunta... Então perguntei: -"Afinal, onde está este gato ou cachorro?". Um olhou para o outro e me levaram até o porão da casa da minha mãe, onde estava um gatinho, de aproximadamente 4 meses, deitado numa caixa de papelão forrada, com uma das patinhas enfaixada.

Era um gato "sem raça definida", como dizem os veterinários; para mim, "a esclarecer". Branco, com manchas cinzas tigradas de cinza claro e cinza escuro; parecia pintado à mão, com pelagem curta. Seus olhos pareciam de Cleópatra, como se tivesse passado um delineador e puxado o traço para os lados, tornando-os muito bonitos. Uma gracinha! E me olhava com um olhar do "tipo pidão" (será que nos "anais da literatura animal" tem este tipo de olhar catalogado?). Prestei meus cuidados "enfermeirais" e conversei com meus filhos, pois minha mãe sempre detestou animais em casa. Fizemos um trato: o gato só ficaria ali até ficar curado.

Todos os dias, antes de sair para trabalhar no posto de saúde, dava pão molhado no leite para o gato comer e, à noite, antes de sair para o plantão no hospital, fritava uns "nuggets" de frango e oferecia ao gato, que a esta altura dos acontecimentos fora batizado pelos meus filhos de Félix. Eles estavam muito felizes!

Após a recuperação "do cidadão", meus filhos insistiram em ficar com o gato, que já estava "enturmado". Ele ficava no quintal, no máximo no porão, e gostava de "dorminhocar" em cima da laje do banheiro da lavanderia, ao lado da caixa de água. Conversei com minha mãe sobre o fato das crianças estarem dando muito trabalho e que talvez um gato os tornasse mais entretidos no quintal, dando um pouco mais de folga para ela, pois eu mal parava em casa. Ela relutou um pouco, mas acabou concordando, afinal, "vó é vó", e disse que só aceitaria desde que ele ficasse somente no quintal, fora de casa.

Acordos firmados, paciente curado, crianças felizes, o gato foi crescendo. Lá pelas tantas descobriu-se que o gato não era um gato e sim uma gata!!! Perguntei às crianças qual seria o seu novo nome e eles resolveram, na hora, que o feminino de Félix é Felina, e assim ficou.

Felina era a rainha do quintal. Não parava um minuto, se é que se pode falar isto de um gato que, como se sabe, dorme em média 20 horas por dia! Era muito dócil e amava meus filhos. Eles faziam o que queriam com ela; nunca reclamava! Subia numa árvore (Pata de Vaca) e lá ficava; até dormia lá em cima, às vezes. O Rúben também subia e ficavam brincando "no poleiro" por "horas a fio". Via nela gratidão por todos os cuidados que lhe demos e pela acolhida em nossa casa.

Numa noite, após alguns meses, ouvi um "grito animal" no quintal. Não era aquele "mia-mia" de namoro felino. No dia seguinte contei o ocorrido ao meu irmão,Paulo Alencar, que nos visitava, vindo de Janauba; ele é engenheiro agrônomo e morreu de rir ao ouvir que eu achava que a nossa gatinha fora "inaugurada de uma forma não muito amigável". Me disse que, para uma gata que fora estuprada na noite anterior, ela estava com um aspecto muito feliz! E rimos muito...

O tempo passou e me pareceu que o seu ventre estava crescendo... Fiquei preocupada, pois sou enfermeira obstetra, de gente, não de animal! Esperei o inevitável, e esperei, esperei, por 3 longos meses. Conversei com alguns amigos e ninguém conseguiu me informar quanto tempo dura a gestação de gatas. Lembrei-me que a gestação de uma elefoa (ou aliá, como queiram) dura em torno de 20 meses... Fiquei preocupada mas vivia de lá para cá durante toda a semana e, aos finais de semana fazia plantão de 12 ou 24 horas numa maternidade, na zona sul. Andava de ônibus por aproximadamente 5 horas por dia. Pela manhã acompanhava estagiários de Enfermagem Obstétrica em Sala de Parto, zona sul (de segunda à quinta); à tarde era auxiliar de chefia em um posto de saúde (ou será de doença?) na zona oeste, repondo horário às sextas-feiras, durante todo o dia. Lembre-se que em São Paulo tudo é longe, ainda mais de ônibus! Vivia "sonada". Dormia muito pouco e ainda "gerenciava" a construção da minha casa. E dava atenção para as crianças, e tudo o mais que parecia ser necessário resolver.

"De repente", meus filhos me contaram que a gata havia passado o dia todo com dores. Perguntei a freqüência das contrações e minha mãe, que já "estava de parteira", disse que eram fracas e "de hora em hora". Achei que ela devia estar entrando em trabalho de parto. Disse que era melhor dormir (só pensava em dormir!) e que provavelmente ela iria parir até a manhã seguinte. Confesso que pedi a Deus para que nascesse durante a madrugada, no porão, ou no dia seguinte, pois não sabia, e não sei, fazer parto de gatas!!!

No dia seguinte, antes de sair, pela madrugada (sim, pela madrugada, pois acordava às 4:30h!), fui ao porão, fiz um carinho na Felina, vi que estava bem e fui trabalhar. Fiquei o dia todo torcendo para que, quando chegasse em casa, já encontrasse os "pequeninos mamando nas tetas maternas". Na dúvida, levei umas luvas descartáveis para casa, para o caso de ter que fazer um exame de toque na gata e avaliar a evolução do trabalho de parto da "dita cuja".

Meu Deus!!! Só de pensar num parto complicado ficava apavorada. O que iria fazer? Pensava na necessidade de colocar um soro, sei lá!!! E como faria um toque numa gata? Será que se examinava assim? Será que era com o dedo mindinho? Muitas, muitas dúvidas...dúvidas teóricas e práticas!

Quando cheguei em casa, à noite, fui informada que a Felina teve contrações durante todo o dia, andando pelo quintal, miando sem parar. Achei que o parto fatídico ocorreria pela madrugada, e fomos dormir. Mais uma vez, torci para que o "evento" se concretizasse de madrugada, de preferência sem a minha presença...

No dia seguinte eu tinha uma reunião "obrigatória" pela manhã na faculdade, outra reunião "inadiável" à tarde na Prefeitura. Só isto! Não preciso falar que faltei às duas!!! Ao acordar fui dar uma espiada na gata e ela estava esbaforida, com as contrações irregulares, começando a "tremelicar". Se fosse gente, eu pensaria numa infecção generalizada (septicemia), mas como era animal, meus neurônios, recém acordados, ficaram sem saber o que pensar... Meu filho mais velho ficou apavorado e pediu-me para socorrê-la.

Nesta época eu estava sem carro, pois havia dado o meu como entrada no terreno. Lembrei-me de um veterinário que tinha uma clínica próxima, mas como estava sem um mísero real (ou será cruzado? ou cruzeiro? não me lembro mais qual a moeda usada "nos idos" de 1995...), resolvi ir conversar com ele antes. Contei a situação da gatinha e ele riu muito. Riu da situação e das minhas "dúvidas obstétricas animais"! Disse que não deveria ser gravidez por que a gravidez "gatosa" dura 2 meses!!! Pediu-me para buscá-la para "dar uma olhada".

Resultado "da olhada": uma cirurgia de emergência para retirada dos fetos. Pedi para aproveitar e laquear, ou melhor, castrar, e foram retirados três gatinhos lá de dentro. Um já estava em decomposição, outro estava morto e o outro morreu (ou faleceu?) logo após sair do ventre. Como boa enfermeira, dei os primeiros cuidados ao recém-nascido-felino, com direito a aspiração das narinas e tudo, até massagem cardíaca com o dedo polegar!!!. Fazia tudo enquanto o Rúben assistia, preocupado. Eu, de minha parte pensava, com um pouco de remorso, que era melhor que o "recém-nascido-gato" não "vingasse" pois, como iria cuidar de um recém-nascido e de sua mãe no pós parto, trabalhar em três empregos, cuidar dos meus filhos, acalmar minha mãe, amenizar as brigas por ciúme entre minha irmã e meus filhos, gerenciar a construção da nossa casa, e tudo o mais que se fizesse necessário??? Pois é, o gatinho, coitado, morreu...

Paguei com "cheque pré" para o meu 13º salário e estávamos em Outubro! Imaginem, uma laqueadura em "humanas" no Centro Cirúrgico do hospital em que eu fazia plantões ficava mais barato do que a cirurgia daquela gata, realizada na cozinha adaptada de uma casa comum, sem a assepsia de um Centro Cirúrgico!

Levamos a Felina para casa ainda semi-consciente, com instruções de deixá-la dentro de casa até a retirada dos pontos... Minha mãe me olhou com um olhar misto de compaixão, pelo estado da gata, e de resignação. Ela ficou na cozinha, "super" bem cuidada. Para encerrar, Felina foi vítima de uma "baita" infecção, tomou um antibiótico "pra lá de caro"... Todos os dias eu fazia curativo e espremia o local, de onde saiam "baldes" de pus, e lavava dentro da cavidade com seringa e antibiótico. Ela aceitava tudo sem reclamar, apesar da dor, parecendo entender que estávamos cuidando dela.

Esta gata se tornou muito amiga; nunca arranhou meus filhos, mesmo quando o caçula, Lucas, a enterrou em pé na areia do quintal da casa do vizinho, só deixando a sua cabeça para fora, num dia de um frio cruel!!! Quando reclamei, respondeu-me, surpreso, que deixou a cabeça para fora para ela poder respirar. Ele estava com 7 anos...

Quando finalmente mudamos para a nossa casa, após 2 anos, ela ficou na casa da minha mãe por uma semana, para fazermos a mudança e arrumarmos um local adequado para ela ficar (disseram que gatos não gostam de mudanças). Depois a levamos de carro, dentro de uma caixa de papelão para não facilitar a sua fuga e para que ela "não soubesse o caminho de volta". Ficamos com ela presa dentro de casa por uma semana e, aos poucos, conforme ia se adaptando, fomos "ampliando os seus horizontes".

Logo que mudamos, aconteceu um episódio engraçado. Havia um terreno baldio em frente à nossa casa, onde havia muitos ratos. Um dia ela saiu, e após um tempo voltou com um camundongo preso na boca. Estava morto e acho que ela trouxe para nos mostrar o seu grande feito! Passados uns minutos, mais um, e mais um, e mais um até completar 14 ratos! Alguns vinham ainda vivos e ela gostava de jogá-los com as patas dianteiras para cima por várias vezes, até morrerem. Parecia um jogo. A cada rato trazido, eu desinfetava o chão da cozinha com cândida, como toda boa enfermeira! Isto se repetiu até eu perder a paciência, dar uma bronca e falar que não precisava trazer seus "troféus" para casa. Nunca mais ela os trouxe. Mas quando entrava algum rato em casa, ela o caçava até aprisioná-lo num canto e começar a "sessão tortura". Jogava o intruso para o alto várias vezes até ele morrer, depois o abandonava para limparmos... Um certo dia ela correu atrás de um passarinho, conseguindo pegá-lo. Quando ia começar o ritual de tortura, o Lucas, o caçula, viu e deu uma bronca "daquelas". Creio que ele exagerou, pois nunca mais a Felina correu atrás nem de ratos nem de pássaros. Só olhava para a gente, meio "apalermada". Acabara-se a sua temporada de caça!

Em outra ocasião a "danadinha" sumiu por três dias. Confesso que orei muito por ela. Quando apareceu estava suja, muito suja, e com uma fome incrível! Deu-nos a impressão de ter ficado presa em algum porão, ou algo assim. Ficamos numa alegria só, e demos o único banho da sua vida!!!

Um dia ela subiu no telhado da edícula e não conseguiu sair de lá sozinha. Tivemos que fazer uma "operação resgate", com escada e tudo! Acionei os pedreiros que estavam em casa; foi muito complicado e demorado. Finalmente, meu filho Rúben, então com 12 anos, colocou uma escada do telhado da nossa casa para o telhado da edícula, e a trouxe em segurança. Imaginem a minha preocupação com os dois!

Às vezes, de repente, Felina começava a correr pela casa atrás "de nada", até cansar. Eu achava que era uma forma de descarregar a sua energia, pois normalmente era muito sossegada. Quando "desembestava" a correr, dizíamos que estava praticando a "xispada pelada". Gostava também, como prova de carinho, lamber o cabelo do Lucas quando estávamos deitados, assistindo televisão. Parecia que estava satisfazendo seu instinto maternal animal, que foi interrompido...

Ela era minha aliada na educação das "crianças"!!! Quando meus filhos, já adolescentes, ficavam de madrugada no computador, ou assistindo a algum filme, ela me chamava, até eu perceber o que estava acontecendo de "anormal". Ela queria dormir e eles atrapalhavam o seu sono. Com o tempo, meus filhos perceberam que ela os entregava; eu jamais contaria.

No final da sua vidinha ela ficava mais em casa, só saindo para fazer as suas necessidades fisiológicas, e quando voltava, pedia para abrirmos a porta. Já estava com dificuldades para pular a janela da sala, que ficava sempre meio aberta para garantir o seu "direito de ir e vir". Gostava de ficar comigo na cama, deitada ao meu lado, enrodilhada, perto do meu ventre, se esquentando e me fazendo companhia. Amava assistir televisão comigo e, se eu fosse preparar alguma aula, sentava-se bem em cima dos livros! Queria atenção "a todo custo". Gostava também de deitar-se no meu colo, enquanto eu fazia tricô ou crochê. Não mexia nas lãs, pois sabia que eu não gostava... No inverno, de vez em quando, me acordava com dificuldade de respirar, parecendo estar com bronquite; então eu a colocava bem próxima a mim, agasalhando-a, até melhorar...

Ela já devia estar esclerosando, pois mal entrava, pedia para sair e mal saia, pedia para entrar. Rúben dizia que ela estava sofrendo de velhice crônica, e muitas vezes não dava para saber o que queria. Ficava miando e andando pela casa, sem conseguirmos adivinhar o que queria. Meus filhos me perguntavam se era assim mesmo. Eu dizia que devia ser e que devíamos proporcionar-lhe uma velhice tranqüila; afinal, ela fazia parte da família!

Conviveu conosco por 12 anos e me lembro dela com carinho, das noites em que me acordava para receber um pouco de atenção ou pedindo ração "nova", afinal aquela já estava "velha" (eu sempre colocava um pouco antes de dormir); quando ficava me esperando no portão de casa e entrava junto comigo até dentro de casa (isto acontecia porque, muitas vezes as minhas cadelas que ficam no quintal, por ciúmes, não a deixavam entrar sozinha).

Uma noite, ao chegar em casa, não veio me encontrar. Não me importei muito, pois ultimamente ela ficava me esperando na minha cama, em cima do travesseiro, sobre a colcha, e me olhava com cara de "olha eu aqui". Mas ela não estava na cama, nem no quarto, nem em lugar algum da casa. Fiquei preocupada e, antes de dormir me certifiquei que ninguém havia fechado a "janela dela", mas ela não apareceu.

Todos os dias eu trocava sua água e ração, na esperança dela voltar. Ao chegar do serviço, a primeira coisa que perguntava era: -"E a Felina?". E meus filhos: -"Nada, ainda"...

Após uma semana pedi a Deus que eu queria pelo menos saber se ela estava ou não morta, para não mais me preocupar em saber como ela estaria ou não. Queria ter certeza.

Ao chegar em casa, minha empregada falou que tinha uma notícia "não muito boa" para me dar, e seus olhos marejaram... Levou-me até o muro do fundo do quintal e me mostrou a Felina, já "seca" parecendo estar empalhada. Ela deve ter ingerido algum veneno e morreu tentando voltar para casa; talvez na esperança de cuidarmos dela novamente, e a curarmos...

2 comentários:

  1. Meu gatão "Mike" (tá no blog "O tempo passa...) também morreu em circunstâncias estranhas, no gramado do vizinho. Foi uma pena porque era um animal muito legal!!!

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  2. Rubinho:

    Não é que às vezes ainda sinto uma imensa saudade dela???

    Os Mikes da vida nos enriquecem...

    bjs

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